"Sempre que alguma coisa me corre mal, ou então, como acontece com frequência nos dias escuros, sempre que me acho mais céptico em relação à humanidade, lembro-me do estranho objecto que descobri ao visitar um centro de recuperação de mutilados, em Viana, pequena cidade nos arredores de Luanda. Pensei primeiro que fosse uma obra de arte moderna, confusa colagem de ferros retorcidos que vagamente, muito vagamente, deixava adivinhar a forma de uma perna humana. Um enfermeiro seguiu o meu olhar: «é uma prótese», explicou, «ou melhor, foi uma prótese». Contou-me que alguns meses antes tinha aparecido ali um velho camponês. Caminhara desde uma remote aldeia do norte usando em lugar da perna direita o extraordinário aparelho. A perna perdera-a no princípio dos anos sessenta, quase quatro décadas antes, ao pisar uma mina. Socorrido por soldados portugueses recebera uma prótese de alumínio e regressara a casa. A prótese quebrara-se várias vezes e ele mesmo a consertara, pacientemente, com arame farpado, cintas de obuses, ferro velho, enfim, o que estivesse mais à mão, até ao fantástico estorvo atingir os vinte e cinco quilos de peso. Quando no centro de recuperação de mutilados lhe entregaram a nova prótese o homem (contou-me o enfermeiro) sorrira radiante: «agora», dissera baixinho, como se revelasse um segredo, «posso dançar outra vez» (...)"
(José Eduardo Agualusa in A Substância do Amor e outras crónicas)
2 comentários:
Faz-nos pensar, não é?
acredita ...
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